Respirar em Marte é um dos maiores desafios à sobrevivência humana no planeta vermelho. Uma equipa de cientistas liderada pelo Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN) está pronta a dar um forte contributo neste sentido, e acaba de conquistar 175 mil euros de financiamento da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) para o fazer. O objetivo do projeto financiado, o Performer, é criar um protótipo que demonstre a produção de oxigénio diretamente a partir da atmosfera de Marte, usando tecnologias de plasmas.
O projeto pretende tirar partido do principal constituinte da atmosfera marciana, o dióxido de carbono (CO2). “Estamos interessados em particular nos átomos de oxigénio existentes na molécula de CO2. Para os utilizar é preciso quebrar a forte ligação entre o oxigénio e o carbono, decompondo a molécula de CO2 em monóxido de carbono e oxigénio. Ambos podem ser posteriormente utilizados para produzir combustíveis, enquanto o oxigénio pode ser recolhido e usado para respirar”, explica o professor Vasco Guerra, docente do Departamento de Física (DF), investigador do IPFN e líder do Performer.
O projeto propõe uma abordagem nova baseada no plasma – o quarto estado da matéria, explorando o efeito sinérgico entre duas tecnologias emergentes: plasmas não térmicos e membranas condutoras de iões. “Os plasmas não térmicos são meios altamente reativos que, ao funcionarem fora do equilíbrio termodinâmico, oferecem possibilidades únicas para quebrar a ligação entre o oxigénio e o carbono, tirando partido da energia armazenada nos graus de liberdade internos”, evidencia o investigador. “O plasma inicia o processo, fazendo a decomposição do CO2 de modo relativamente eficiente. Isso aumenta o fluxo de oxigénio para a membrana condutora de iões, que irá extrair do volume do plasma o oxigénio que nela incide”, complementa.
Tal como explica o docente do DF, a sinergia aparece de duas formas: “em primeiro lugar, por via desse aumento do fluxo de oxigénio para a membrana condutora de iões, que se traduz também num aumento da quantidade de oxigénio extraída. Em segundo lugar, a condutividade das membranas atinge o seu valor ótimo a temperaturas relativamente elevadas, acima dos 900 ºC”. “O calor gerado pelo plasma deverá permitir reduzir ou eliminar a energia usualmente despendida no aquecimento da membrana”, partilha.
À equipa do IPFN neste consórcio juntam-se investigadores do Dutch Institute For Fundamental Energy Research (DIFFER) e do Laboratoire de Physique des Plasmas (LPP), dando seguimento a uma colaboração já com muito histórico. “Trabalhamos com o DIFFER e o LPP há vários anos, noutros temas para além deste projeto”, salienta o professor Vasco Guerra.
O IPFN irá desenvolver toda a parte de modelação e simulação numérica e estudar experimentalmente um dos três tipos de reatores que serão testados. “Cada um dos parceiros testará um tipo de reator diferente, sendo que o DIFFER terá um papel central, por ser quem possui a tecnologia de membranas condutoras de iões e será por isso o primeiro a tentar o acoplamento entre plasmas e membranas”, revela o líder do Performer.
Reator procurará superar os resultados obtidos pelo instrumento MOXIE
Até agora, a única solução proposta para a produção de oxigénio em Marte é a experiência MOXIE (Mars Oxygen In-Situ Resource Utilization Experiment) da NASA que, em abril deste ano, fez história convertendo dióxido de carbono em 5.5 gramas de oxigénio puro em uma hora, o que seria suficiente para que um astronauta pudesse respirar no Planeta Vermelho durante dez minutos. O projeto do IPFN pretende ir mais longe nesta meta, prevendo-se que ultrapasse os 10 gramas de O2 por hora, recorrendo à mesma potência do MOXIE, 300 Watts (W).
Tendo em conta os elevados custos de transporte de objetos para o Espaço “cada grama conta”, como recorda o professor Vasco Guerra. Também neste aspeto o reator com o cunho do IPFN poderá destacar-se pelas reduzidas dimensões que se prevê que tenha. “O MOXIE pesa 17 kg, nós vamos tentar construir o nosso reator com 6-7 kg. O volume do nosso reator poderá também ser 5-6 vezes inferior ao do MOXIE”, denota o docente.
O professor Vasco Guerra realça que o MOXIE é “um projeto muito estimulante” e que “estabelece os objetivos que temos que atingir em termos de potência, quantidade de oxigénio produzida por hora, peso e volume do reator”. Não esquecendo as ótimas previsões que existem em torno do protótipo, o docente do DF sublinha, no entanto, que o instrumento da NASA “tem uma grande vantagem sobre nós: baseia-se em tecnologia conhecida e robusta… e já existe”. O docente do DF, descarta, aliás, qualquer ideia de competição entre os dois projetos que possa pairar no ar, destacando que o Performer surge antes numa lógica de “complementaridade e colaboração”.
A equipa do Performer tem 6 meses para demonstrar o conceito do projeto. “Se as coisas correrem bem, teremos depois 12 meses adicionais para definir o tipo de reator, a geometria e as condições ideais de funcionamento, de modo a otimizar o reator”, destaca o investigador. “Se tivermos sucesso, o passo seguinte será concorrer para um projeto futuro já com a perspetiva de fazer a tecnologia evoluir até estar pronta para se pensar numa missão espacial”, adianta ainda.
Conhecimento adquirido pode também ser útil para tonar a vida na Terra mais sustentável
A ideia de utilizar plasmas para produzir oxigénio em Marte surgiu no contexto do projeto PREMiERE (CO2 Plasmas: a fRiEndly MEdium for Renewable Energy), sobre a utilização do CO2 na Terra que a equipa do IPFN tinha em mãos. “Concretamente o projeto estudava a utilização de energia renovável para converter o dióxido de carbono em combustíveis líquidos por tecnologias a plasma, de modo a substituir os combustíveis fósseis por combustíveis verdes sintéticos. Começámos a pensar se o que estávamos a investigar na Terra se poderia adaptar ao contexto marciano”, afirma o professor Vasco Guerra. A resposta é positiva e começa agora a ganhar forma com o este projeto.
A equipa de investigadores não descurará, no entanto, a investigação da conversão do CO2 na Terra, como uma resposta com potencial para a problemática das alterações climáticas. “Tivemos agora um novo projeto financiado pela FCT, o projeto PARADiSE (the PlasmA RoAD to Solar fuEls), que se vai também iniciar em janeiro de 2022 e vai capitalizar nos resultados anteriores”, partilha o docente do DF. O objetivo do projeto é, aliás, fazer a demonstração do conceito na Terra. “Esperamos de facto que o que aprendermos com o projeto da ESA nos ajude também neste projeto. E assim contribua para tornar a vida na Terra mais produtiva, limpa e sustentável, ao promover as tecnologias de utilização do CO2 na Terra e a transição energética para energias renováveis”, sublinha o docente do Técnico.